segunda-feira, 17 de março de 2008

Koln Concert no Índico






O concerto de Colónia espalha-se pela baía até ao limite das nuvens
ao tremer das águas sucessivo segue o altear do piano em seu espasmo infinito
esqueço-me do rumor das casuarinas
esqueço-me de todos os sons
apenas o crescendo desse revolver do piano no interior das águas

e chove tanto de súbito no mar
chove essa chuva quente e boa
que se dilui água na água

transparente o azul chumbo de uma linha no horizonte desenha estranha contemplação dos anos uns sobre os outros rolam nas notas do piano
como uma odisseia formidável

um redemoinho sem sossego tão sossegado e brando
aqui pousado nesta janela por onde entra toda a paisagem do Indico
entretecida do concerto de Colónia
aqui na baía com dois barcos que passam ao longe
e no seu passar passam com eles os meus breves dias, a respiração do tempo bate devagar dentro das águas
pousadas as nuvens em longo sofá azul esmaecido repousam do céu a luz do impreciso devir

não sei se me apetece falar
todos os sons são mais precisos que os da fala
por isso apenas ouço
desde que nasci que ouço
todas essas vozes que caminham em silêncio pela garganta do mundo e estremeço de admiração
pelas múltiplas raízes do seu correr de sentidos
as nuvens entretanto ficam azul escuro
e corre uma brisa devagarinho pela margem do esquecimento
acordo para a noite e percorro com o olhar a verdadeira face do silêncio nestas notas que correm o piano em que o concerto nunca mais acaba
devolvido à redundância de um solfejo a prumo na quilha do mar adormeço

desse sono que é ser em devir em deriva
desse sono que é memória perdida lançada nas redes que deixei que deixo que deixarei ao longo desta costa neste mar que me devolve ao estado de ser perpétuo

pouso a cabeça entre os joelhos e o mar continua a entrar pela varanda invade a mesa e alaga a casa de azuis ultramarinos, meia noite, esmeralda turmalina nas notas de Keith Jarrett vibradas ao encontro daquelas amuradas de nuvens e destes sofás de ouro que a noite traz cheia com sua lua enlouquecida de tão gravitada em luz
obesa de laranja e fruta etérea caminha por sobre as águas como se fosse em direcção ao infinito
assim vai lenta e vagarosa a atravessar aquele horizonte do silêncio em que o mar descobre mais para diante a ilha de Madagáscar

no seu pangaio de luz a lua vai nua
e já quase branca
ofélia-da-índia
rumor de sonho
deitada em sua morte iluminada faz chorar os muezins nos píncaros dos minaretes mais a norte
dizem que hamlet enlouqueceu
e com ele toda a costa deste castelo desta amurada índica
sopram búzios a levante keith jarrett mergulha no mar com seu longo piano de cauda e as notas ouvem-se lentas a trinta e três rotações

porque me esquece o coração de ser? porque tão estranho esquecimento me povoa ? a porta abre-se de repente com o vento e entra de novo a brisa índica pela mão de jarrett em múltiplos acordes
o seu piano emergiu das águas e atravessa agora a planura ondeante deste horizonte em que não acabo e a que pertenço como um silabar de música ausente desde que nasci neste lugar neste ondear interminável da memória

quem sabe um dia estas águas serão mais serenas já quase próximas de não se ouvirem os rumores que fazem quando o bater das ondas chega próximo do coração chega próximo desse lugar apetecido donde se parte como de um cais sempre em viagem de navio fantasma
que o tempo o traz nos seus inumeráveis regressos
demanda impossível em allegro andante ma non tropo jarrett suspira e o mar de novo ondeia pelas semibreves que o quase extâse vibrou em mi maior quando lua de novo se despiu das nuvens e mostrou seu perfil cheio entregue ao fim desta noite talvez ao começo da próxima e de tantas outras que hão-de vir sobrepostas e lentas

aqui neste sossego sem qualquer memória em que apenas o concerto de colónia se entranha num tempo agora ouvido
junto ao coração em jazz estribado a horizontes perdidos por ti keith jarrett no meu mar índico agora cor de azul meia-noite em mim navegando com barcos fosforescentes que singram altos em acordes longe e longamente soprados

em soltos panos de lua




(Keith Jarrett, Koln Concert)

1 Comentários:

Blogger Chagas disse...

Eu gosto desse tema de Jaret. A primeira vez que ouvi foi por intermédio de um amigo, o Afonso a 10 anos, um matemático e outras coisas o Afonso. Belo tema na verdade e belo o que fizeste com o poema, pensando nesse tema. A poesia sempre andará¡ com a música. Como diaria o Pound: a poesia estraga-se quando se afasta demasiado da música, como a música estrataga-se quando se afasta demasiado da dansa.

31 de março de 2008 às 05:21  

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