segunda-feira, 31 de março de 2008






No preto ibericamente mulato,
na negra goêsmente branca
ficou uma mensagem de saudade.
Triste saudade de conchas
cheia dos lampejos da maré vazante!
Só brilhos e lembranças
do medo que me acompanhava na machila.
Será, que foi o medo que me transfigurou o gosto?
ou foi,um simples sortilégio sulista
de timbila?

Júlio Carrilho

esta minha cidade bela e ancorada ao tempo
carcomida até ao âmago e resignadamente
presa ao seu desterro sorri para não chorar
tem o céu aberto até à alma e uma vontade
recalcada: que a morte seja órfã de si mesma

choram os homens?
é penoso o caminho

há no ar ainda os morcegos da última noite
o medo – sombra negra – assombra o presente
desta gente mudam-se os tempos –

apenas os tempos

Guita Júnior

OS SERÕES POÉTICOS DA ILHA

De oitocentos os serões da Ilha recordo nos salões
a poesia, os dramas, a música, a arte companheira
pelo poeta as frágeis donzelas pulsando os corações
versos da moçambicana voz de Campos de Oliveira.


As noites quentes corriam céleres e encantavam
com o piano e a dtara vibrando as vozes tropicais
pelas portas e reposteiros muthianas espreitavam
esses senhores e senhoras dedilhando seus ais.

Lá fora na praia sem Camões e Gonzaga na memória
macuas de Cristo e Mahomed cantavam outra história
de xeques, noites de djinis e escravas revoltadas.

E nas mesquitas, capelas, templos de xiva e pagodes
Aculturavam-se em harmonia outras vozes e acordes
Sentidas preces de Muhipiti, canções libertadas.


Calane da Silva

domingo, 30 de março de 2008




o som das ondas cobre-me por inteiro

sinto o vento nos amores perfeitos e
penso no mar
o som das ondas cobre-me por inteiro

o perfume

entre mim e ti
os sons passando como o vento nessa qualidade de silêncio
que se torna música

pensei deixar-te um recado
começo a escrever :

os dois em direcção ao mar daqui a muitos anos
a conversarem um com o outro
como se eu não existisse
rostos familiares
estranhos
não,
familiares

sim, eu e tu
o perfume
afasto o reposteiro no mar sob a chuva
sinto o vento nos amores perfeitos

o som das ondas cobre-me por inteiro












baralho o coração

baralho as cartas alinho-as
um gnomo lâmpadas azuis
se me perguntarem respondo
árvores
espadas
copas

há séculos que não olhava as árvores assim
movem os ramos contra o céu
de que serve conversar?
escuro no jardim sem um sinal de aurora
uma única estrela
lilás

baralho as cartas alinho-as
não consigo respirar
o coração parou sobre a mesa

imóvel nas vidraças alinho as cartas
os gnomos saltam pelas lâmpadas

cartas azuis copas vermelhas espadas prata
te envio a todo o momento
jogo escrevo

baralho
alinho
o coração






sexta-feira, 28 de março de 2008




Kahlil Gibran, um dos meus poetas mais amados



Vim para dizer uma palavra e devo dizê-la agora.

Mas se a morte me impedir, ela será dita pelo amanhã, porque o amanhã nunca deixa segredos no livro da Eternidade.

Vim para viver na glória do Amor e na luz da Beleza, que são reflexos de Deus.
Estou aqui, vivendo, e não me podem extrair a graça da vida porque, através da minha palavra actuante, sobreviverei mesmo após a morte. Vim aqui para ser por todos e com todos, e o que faço hoje na minha solidão ecoará amanhã entre todos os homens.
O que digo hoje apenas com o meu coração será dito amanhã por milhares de corações.

Gibran Kahlil Gibran

O meu amigo Chagas Levene diz:

É difícil definir o amor eu sei



É difícil definir o amor eu sei
Dele aliás não dou lições

O pouco que sei Uma vulgar gramática poierenta explica
Como sendo um substantivo Masculino variável
E por aí fora Não procura mais competência
Como certos amantes falsos Com flores de carnaval
Que a todo tempo dizem Eu te amo eu te amo

Como se isso fosse uma coisa vulgar Ou talvez não
Acreditam ser um abre-te sésamo Vamos beldade
abracadabra Sou um príncipe atira-te os meus pés

E o que dizem as enciclopédias sobre o amor?
Procuro não as ler Como tantos outros livros
de nobres e sábios eruditos Fastidiosos alguns
Como estas linhas Pouco limpas E que a lindas
mulheres Procuram impressionar

Como se assim eu definisse o amor
Chagas Levene









ROSTO DE ÉBANO




Retenha a neblina em teu rosto de ébano
Como quem resgata a fúria dos espelhos.
Lúgubres são os olhos que amanhecem
Na quietude da espuma e da areia morna.
Tacteia na pele da chuva os contornos
Do chão e das vozes que obstinadamente
Insistem em calar a noite e dobrar o verso.
Ébrias são as mãos que nos lembram a dor
Na aura matinal do amor desconsentido. .
Escuta agora os sussurros vindos das estepes
Longínquas para que novas viagens e novos
Caminhos em teu rosto reprincipiem.






Armando Artur

em Lisboa a

semana passada

segunda-feira, 17 de março de 2008

Koln Concert no Índico






O concerto de Colónia espalha-se pela baía até ao limite das nuvens
ao tremer das águas sucessivo segue o altear do piano em seu espasmo infinito
esqueço-me do rumor das casuarinas
esqueço-me de todos os sons
apenas o crescendo desse revolver do piano no interior das águas

e chove tanto de súbito no mar
chove essa chuva quente e boa
que se dilui água na água

transparente o azul chumbo de uma linha no horizonte desenha estranha contemplação dos anos uns sobre os outros rolam nas notas do piano
como uma odisseia formidável

um redemoinho sem sossego tão sossegado e brando
aqui pousado nesta janela por onde entra toda a paisagem do Indico
entretecida do concerto de Colónia
aqui na baía com dois barcos que passam ao longe
e no seu passar passam com eles os meus breves dias, a respiração do tempo bate devagar dentro das águas
pousadas as nuvens em longo sofá azul esmaecido repousam do céu a luz do impreciso devir

não sei se me apetece falar
todos os sons são mais precisos que os da fala
por isso apenas ouço
desde que nasci que ouço
todas essas vozes que caminham em silêncio pela garganta do mundo e estremeço de admiração
pelas múltiplas raízes do seu correr de sentidos
as nuvens entretanto ficam azul escuro
e corre uma brisa devagarinho pela margem do esquecimento
acordo para a noite e percorro com o olhar a verdadeira face do silêncio nestas notas que correm o piano em que o concerto nunca mais acaba
devolvido à redundância de um solfejo a prumo na quilha do mar adormeço

desse sono que é ser em devir em deriva
desse sono que é memória perdida lançada nas redes que deixei que deixo que deixarei ao longo desta costa neste mar que me devolve ao estado de ser perpétuo

pouso a cabeça entre os joelhos e o mar continua a entrar pela varanda invade a mesa e alaga a casa de azuis ultramarinos, meia noite, esmeralda turmalina nas notas de Keith Jarrett vibradas ao encontro daquelas amuradas de nuvens e destes sofás de ouro que a noite traz cheia com sua lua enlouquecida de tão gravitada em luz
obesa de laranja e fruta etérea caminha por sobre as águas como se fosse em direcção ao infinito
assim vai lenta e vagarosa a atravessar aquele horizonte do silêncio em que o mar descobre mais para diante a ilha de Madagáscar

no seu pangaio de luz a lua vai nua
e já quase branca
ofélia-da-índia
rumor de sonho
deitada em sua morte iluminada faz chorar os muezins nos píncaros dos minaretes mais a norte
dizem que hamlet enlouqueceu
e com ele toda a costa deste castelo desta amurada índica
sopram búzios a levante keith jarrett mergulha no mar com seu longo piano de cauda e as notas ouvem-se lentas a trinta e três rotações

porque me esquece o coração de ser? porque tão estranho esquecimento me povoa ? a porta abre-se de repente com o vento e entra de novo a brisa índica pela mão de jarrett em múltiplos acordes
o seu piano emergiu das águas e atravessa agora a planura ondeante deste horizonte em que não acabo e a que pertenço como um silabar de música ausente desde que nasci neste lugar neste ondear interminável da memória

quem sabe um dia estas águas serão mais serenas já quase próximas de não se ouvirem os rumores que fazem quando o bater das ondas chega próximo do coração chega próximo desse lugar apetecido donde se parte como de um cais sempre em viagem de navio fantasma
que o tempo o traz nos seus inumeráveis regressos
demanda impossível em allegro andante ma non tropo jarrett suspira e o mar de novo ondeia pelas semibreves que o quase extâse vibrou em mi maior quando lua de novo se despiu das nuvens e mostrou seu perfil cheio entregue ao fim desta noite talvez ao começo da próxima e de tantas outras que hão-de vir sobrepostas e lentas

aqui neste sossego sem qualquer memória em que apenas o concerto de colónia se entranha num tempo agora ouvido
junto ao coração em jazz estribado a horizontes perdidos por ti keith jarrett no meu mar índico agora cor de azul meia-noite em mim navegando com barcos fosforescentes que singram altos em acordes longe e longamente soprados

em soltos panos de lua




(Keith Jarrett, Koln Concert)